
29/09/2023
No mês de setembro, aconteceu em Santiago, no Chile, o 48º Congresso Internacional de Apicultura. No evento, a pesquisadora científica Cynthia Fernandes Pinto da Luz, do Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), apresentou trabalhos realizados na instituição, mostrando a diversidade de abordagens sobre o tema e como as diferentes áreas do conhecimento se interligam. Ela expôs resultados de análises de caracterização do néctar e da qualidade do mel de mais de 100 amostras de 11 das 15 mesorregiões de São Paulo, bem como o levantamento das principais plantas nectaríferas existentes no Estado. Também compartilhou dados sobre a biologia reprodutiva de uma população arbórea de guanandis (Calophyllum brasiliense) do Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, na capital paulista, e seus polinizadores.
O Congresso foi coordenado pela Apimondia (Federação Internacional de Associações de Apicultores) em colaboração com diversas instituições. Trata-se da principal organização mundial dedicada à apicultura e à meliponicultura, atuante desde 1895 e que promove em todos os países o desenvolvimento científico, ecológico, social e econômico do setor. A abrangência deste evento desempenha um papel crucial para aqueles que buscam estar atualizados com as mais recentes inovações e descobertas nesses campos. Representa uma oportunidade singular para apicultores, pesquisadores e empresas compartilharem conhecimentos e experiências, com o intuito de promover o progresso dessas práticas em escala global. “É o evento internacional que possui o maior número de estudos relacionados à polinização de espécies vegetais, informação de suma importância na minha área de pesquisa” defende a pesquisadora do IPA.
Apicultura x meliponicultura
Bióloga e doutora em Geologia, Cynthia explica que apicultura e meliponicultura são duas abordagens diferentes para a criação de abelhas e a produção de mel, com diferentes espécies de abelhas, técnicas de manejo e objetivos.
Na prática da apicultura são utilizadas abelhas do gênero Apis, principalmente a Apis mellifera, que é a espécie mais comum em todo o mundo e que possui ferrão. “São abelhas africanizadas ou europeias. Evidências indicam que o homem pré-histórico já coletava mel de abelhas melíferas (Apis) há cerca de 15.000 anos. Até o desenvolvimento da apicultura, a extração do mel era feita de forma predatória. Na apicultura elas são criadas em colmeias de madeira padronizadas, com quadros móveis com favos de cera. No Brasil, a A. mellifera foi introduzida provavelmente pelos jesuítas no século XVII, não é nativa daqui e pode competir com as nossas abelhas nativas pelas fontes de alimento. O mel produzido por elas é amplamente comercializado e consumido em todo o mundo”, relata a pesquisadora.
Já na meliponicultura são criadas abelhas indígenas, ou seja, nativas do Brasil e que pertencem a diversos gêneros e espécies, como jataí, uruçu e tiúba. “Essas abelhas nativas são conhecidas por não possuírem ferrão, o que as torna mais seguras para manuseio. Abelhas sem ferrão são frequentemente criadas em troncos ocos ou caixas especiais, mas o manejo é menos intrusivo e mais fácil, em comparação com a apicultura. O acesso ao mel pode ser mais difícil, e a produção é menor em comparação com a da A. mellifera“, informa a pesquisadora. “A meliponicultura muitas vezes está mais associada à preservação e à produção sustentável de mel, bem como à polinização de plantas nativas e de muitos cultivos agrícolas que dependem delas para frutificar, como algodão, urucum, camu-camu, carambola, maracujá, entre outros. O mel das abelhas sem ferrão é geralmente comercializado em menor escala, muitas vezes de maneira local”, completa.
Análise da origem e da qualidade dos produtos
Cynthia é uma das maiores autoridades do Brasil em estudos de certificação de origem botânica dos produtos apícolas e meliponícolas e da interação abelha/planta. As atividades comerciais da apicultura e meliponicultura exploram comercialmente o mel, o pólen apícola (aquele que foi seco e é vendido em farmácias), o própolis, o geoprópolis, a geléia real e a cera de abelha. A apitoxina, ou veneno de abelha, é comercializada a partir das abelhas Apis.
A análise da origem botânica do néctar do mel, pólen e resinas da própolis e geoprópolis é feita por meio da melissopalinologia, área que estuda os grãos de pólen contidos nos produtos apícolas e meliponícolas, e que, para tanto, utiliza a microscopia.
Na busca pelo néctar as abelhas se “contaminam” com o pólen das anteras das plantas nectaríferas, via cerdas das patas ou de outras partes do corpo e essa presença polínica no mel dos favos de dentro das colmeias é que auxilia na investigação de sua origem botânica. São pistas de onde as abelhas estiveram. Pela identificação dos tipos de pólen encontrados nas amostras, se reconhece as espécies vegetais que os produziram. Se o mel é proveniente de uma fonte principal de néctar é denominado de monofloral ou unifloral. Se é originário de várias fontes de néctar é denominado de heterofloral, multifloral ou silvestre. Dessa forma, indiretamente é reconhecida a vegetação nectarífera de interesse das abelhas ao redor de um apiário e meliponário.
“Esse tipo de análise pode fornecer resultados sobre a oferta de néctar da flora apícola e meliponícola, ou seja, das plantas nectaríferas que estejam em floração e que sejam de interesse para as abelhas. Com essa análise pode-se garantir a rotulagem correta do mel quanto a sua origem botânica, o que agrega valor ao produto”, explica a pesquisadora. Além da caracterização de regiões produtoras, a melissopalinologia também auxilia na obtenção dos selos de Indicações Geográficas para méis. A Indicação Geográfica (IG) é um instrumento de propriedade industrial que busca distinguir a origem geográfica de um determinado produto ou serviço, valorizando-o. No entanto, mesmo esses méis com IGs podem apresentar problemas de rotulagem quanto as suas origens nectaríferas, já que a legislação brasileira não solicita a devida comprovação técnico-científica pela melissopalinologia para o controle das floradas do mel de A. mellifera. Para a rotulagem do mel das abelhas sem ferrão, em alguns Estados do Brasil (por exemplo, Paraná, São Paulo e Bahia) já se encontram legislações exigindo a melissopalinologia.
Qualidade do mel
Para assegurar os parâmetros de identidade e qualidade do mel é necessária a junção da melissopalinologia com as análises físico-químicas do produto. Pela melissopalinologia busca-se observar, além dos grãos de pólen existentes na amostra, outros elementos que indicam alguns pontos no manejo apícola e meliponícola, como presença ou não de bactérias, leveduras, grãos de amido (cuja maior quantidade pode indicar adulteração e falsificação do mel, por exemplo), sujidades, fragmentos vegetais, partículas de fuligem, fungos, etc. Os parâmetros de qualidade físico-química do mel adotados no Brasil estão reunidos nas legislações de A. mellifera e de abelhas indígenas. Apesar do IPA não realizar esse tipo de análise, a instituição possui parceria com o Instituto Adolfo Lutz, por meio da pesquisadora científica Cristiane Bonaldi Cano, que realiza as analises físico-químicas do mel.
Características constantes tais como consistência, cor, odor, sabor e aromas, ocorrem somente em méis monoflorais, isto é, aqueles procedentes do néctar de uma só espécie vegetal (mel de laranjeiras, mel de eucalipto etc). De outro lado estão os méis heteroflorais, cuja composição e características variam de acordo com as floradas, não possuindo características constantes, sendo os mais frequentes no nosso país. “No entanto, repetidamente a indicação de florada dos rótulos dos potes de mel apresentam erros pela falta da análise melissopalinológica”, adverte a pesquisadora.
Em geral, o padrão do Codex Alimentarius de Mel é válido para todo comércio mundial deste produto. O Codex Alimentarius é uma coleção de padrões alimentares, diretrizes e códigos de práticas adotados por uma comissão conjunta da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), formada por representantes de governos de diferentes países, organizações internacionais e observadores, que visam promover a segurança alimentar e garantir a qualidade dos alimentos produzidos e comercializados internacionalmente, levando em consideração a melhor evidência científica disponível e promovendo a harmonização das regulamentações alimentares em nível global. No entanto, outras legislações regionais, como as legislações europeia e estadunidense de mel, podem ser estabelecidas se existirem exigências regionais de qualidade que diferem das apresentadas no Codex Alimentarius. A legislação brasileira vigente para mel (Instrução Normativa MAPA nº 11 de 20 de outubro de 2000) foi baseada no Codex Alimentarius de Mel de 1993 e estipulou limites mínimos ou máximos para critérios de qualidade.
Plantas nectaríferas
As plantas nectaríferas são plantas que produzem néctar, uma substância açucarada e líquida, geralmente encontrada em flores. O néctar é uma fonte de alimento importante para muitos animais, especialmente insetos, como as abelhas. O néctar produzido pelas plantas atrai polinizadores, que transferem o pólen de uma flor para outra, facilitando a reprodução. Essa relação entre as plantas e os polinizadores é vital para a reprodução e a sobrevivência de muitas espécies vegetais e, consequentemente, para a manutenção da biodiversidade. As plantas nectaríferas desenvolveram adaptações físicas e químicas nas flores, tornando o néctar acessível e atraente para os polinizadores. Além do néctar, as plantas também podem oferecer pólen como fonte de proteínas para os insetos.
“As principais plantas nectaríferas observadas nas amostras analisadas de mel de São Paulo são as laranjeiras (diversas espécies do gênero Citrus) e eucaliptos (diversas espécies do gênero Eucalyptus) em áreas cultivadas. Nas áreas com vegetação nativa, como no Vale do Ribeira, os angicos (Anadenanthera colubrina), aroeiras (Schinus terebinthifolia, Tapirira guianensis), plantas do gênero Croton (capixingui, velame), palmeiras Euterpe edulis (palmito juçara) e Syagrus romanzoffiana (jerivá), Schizolobium (guapuruvu, guapiruvu) e diversas Asteraceae foram identificadas como as principais plantas fornecedoras de néctar para as abelhas A. mellifera“, enumera Cynthia, compartilhando seus resultados de pesquisa.
Outro trabalho apresentado pela pesquisadora do IPA no Congresso foi sobre a biologia reprodutiva e dos polinizadores do guanandi. A Calophyllum brasiliense é uma espécie nativa não endêmica do Brasil que ocorre em Mata Atlântica e que apresenta grande importância econômica e medicinal. Também é conhecida no Brasil por outros nomes populares, como jacaré-uba, landim, manga-do-brejo e oanandi. São árvores que podem atingir até 43 metros de altura. Ocorrem na América do Sul tropical e subtropical, em mata de galeria, restinga, mata ciliar e mangue. Em São Paulo, a espécie está associada a ambientes brejosos e restingas. No Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (PEFI) existe uma população composta por 97 indivíduos que foram plantados na área do estacionamento em frente ao Jardim Botânico de São Paulo. Dentre os resultados obtidos no estudo, verificou-se que suas flores não produzem néctar, ofertando somente o pólen como recurso floral, e os principais polinizadores observados foram Apis mellifera, Paratrigona subnuda, Tetragonisca angustula e Halictidae sp.1, o que corrobora com suas características de síndrome de melitofilia, ou síndrome de polinização por abelhas.
As plantas evoluíram ao longo do tempo para atrair polinizadores específicos, desenvolvendo características como cores, aromas, formas e estruturas que atraem e facilitam a polinização por determinados animais. A interação entre as plantas e seus polinizadores é fundamental para a reprodução dessas plantas e a manutenção da biodiversidade. A síndrome de polinização constitui-se em um conjunto de características morfológicas das flores, como a forma e tamanho, o tipo de néctar e pólen produzido, as cores e os odores liberados, assim como a época de floração, resultantes de adaptação evolutiva para atrair polinizadores. “Esta espécie arbórea, o guanandi, apresenta baixo sucesso reprodutivo e é dependente de polinizadores para a formação de frutos e sementes”, esclarece a pesquisadora.
Os trabalhos apresentados no evento tiveram suporte financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bem como autorização do SISBIO e dos gestores do PEFI, e envolveram a orientação de duas alunas de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Vegetal e Meio Ambiente do IPA, Aline Lemos de Moraes e Natalia Sêneda Martarello.