17/03/2023

 

Com Célia Regina de Gouveia Souza

Sou Célia Regina de Gouveia Souza, pesquisadora científica do Núcleo de Geociências, Gestão de Riscos e Monitoramento Ambiental do Instituto de Pesquisas Ambientais-IPA. Estou na carreira desde novembro de 1992 (Instituto Geológico) e sou professora credenciada do Programa de Pós-Graduação em Geografia Física da FFLCH-USP desde 2006. Meu sonho sempre foi trabalhar com o mar, fazer Oceanografia. Na época em que eu prestei o vestibular, o único curso de graduação nessa área era o da FURG, em Rio Grande (RS), mas eu não me imaginava morando lá. Então, pesquisando um pouco sobre Geologia, descobri que eu poderia fazer uma pós-graduação no Instituto Oceanográfico da USP (IO-USP). E foi a melhor coisa que eu fiz! 

A Geologia é maravilhosa, te abre um leque gigantesco de conhecimentos sobre a evolução do planeta e de seus diferentes ambientes e ecossistemas. No mestrado, trabalhei com a evolução da planície costeira de Caraguatatuba e, como havia um conjunto de amostras de sedimentos da enseada de Caraguatatuba para serem estudados, juntei tudo e também inclui as praias que ficam no meio das duas áreas. Ao final, estudei os processos sedimentares quaternários atuais da região. Foi um desafio enorme, porque na faculdade a gente não aprende muito sobre ambientes de sedimentação costeiros. Foi quando comecei a perceber a lacuna de conhecimentos sobre esses ambientes que havia em São Paulo e no Brasil. Ainda no início do mestrado eu fiquei grávida da minha filha Flora, então optei por adiar um pouquinho as pesquisas, até que ela completasse 2 anos. No Doutorado, iniciado em 1991, escolhi estudar o fenômeno da erosão costeira em todas as praias de São Paulo, procurando identificar indicadores e as causas do processo.

Foi quando comecei a me indagar sobre a elevação do nível do mar ser uma das causas, já que várias praias que estavam sofrendo processo erosivo intenso não tinham qualquer intervenção antrópica que pudesse explicar o fenômeno. Mas eu precisava encontrar provas disso. Era uma época em que não se falava em mudanças climáticas e que a gente tinha que “fuçar” e passar dias inteiros nas bibliotecas, lendo centenas de revistas, livros e teses para encontrar estudos que pudessem embasar nossas pesquisas e ideias. Foi assim que eu encontrei alguns trabalhos recentes que demonstravam que o nível do mar estava subindo em muitas partes do planeta, dentre esses estudos o 1º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (1990). E eu nem imaginava o que era esse tal painel e tampouco o impacto que ele teria em minha vida profissional desde então. 

No final de 1992 assumi o cargo de Pesquisadora Científica no então Instituto Geológico, onde outros desafios envolvendo novas frentes de pesquisa e áreas de atuação multidisciplinares me aguardavam, com destaque para temáticas sobre gestão de riscos e desastres hidrometeorológicos, mapeamento de fitofisionomias de Restinga e suas correlações com ambientes de sedimentação, gerenciamento costeiro, sistema de informações geoambientais, legislação ambiental e impactos das mudanças climáticas na zona costeira. isso tudo influenciou muito a minha carreira e minha produção científica, que inclui o primeiro Mapa de Risco à Erosão Costeira do Estado de São Paulo em 2002 e suas periódicas atualizações, o primeiro livro sobre o Quaternário do Brasil em 2005, e  um livro no qual discutindo o termo Restinga, conceitos, aplicações e implicações na legislação ambiental e nos licenciamentos de empreendimentos no litoral brasileiro, publicado em 2008. 

Vários projetos de pesquisa e extensão se sucederam, com financiamentos externos, equipes multidisciplinares e parcerias multi-institucionais e até internacionais. Na última década o foco de meus projetos de pesquisa tem sido voltado à compreensão de eventos meteo-oceanográficos severos vinculados a riscos costeiros na costa paulista, por meio de modelagens matemáticas de eventos contemporâneos e cenários futuros de impactos das mudanças climáticas na zona costeira, desenvolvimento de sistema de alerta precoce para evitar desastres e construção de uma rede de comunicação de riscos costeiros.   

Em minha trajetória científica, num universo profissional tão masculino como no Brasil, é difícil a gente achar referências femininas como inspiração. Mas eu gostaria de citar uma geóloga e pesquisadora americana, a Vivien Gornitz, que foi uma das autoras daquele 1º relatório do IPCC e, naquela época, trabalhava com erosão costeira. Nunca a conheci pessoalmente, mas suas publicações sempre foram uma inspiração.  

As Geociências englobam um vasto espectro de atuações profissionais, mas as pessoas sequer  sabem o que nós somos ou fazemos. Sequer têm noção de que suas vidas não teriam as comodidades que têm sem a Geologia. Não fazem ideia de que suas casas estão assentadas em terrenos que passaram por milhões de anos de evolução, assim como a própria vida na Terra. Por outro lado, sempre me chamou a atenção que, mesmo os profissionais que lidam com ecossistemas e biodiversidade, bem como os que atuam nas áreas das engenharias, também têm dificuldades em entender o papel da geodiversidade. E as escolas, embora abordem inúmeros conteúdos com temas direta ou indiretamente geológicos, pouco falam da nossa profissão. Mas acho que, historicamente, nós geólogos também somos responsáveis por isso. Neste sentido, uma forma de mudar esse paradigma seria atuarmos mais efetivamente dentro das escolas, com a proposição de matérias ou planos de ensino com conteúdos específicos de aplicação das geociências.  

Para mim, ser mulher cientista em um meio de predomínio masculino sempre foi um desafio, desde a época de faculdade. Desde cedo enfrentei discriminações, primeiro quando me candidatei a alguns estágios e, mais tarde, também no meio acadêmico e profissional. Uma boa notícia é que, felizmente, com o passar dos anos, nossa profissão tem se tornado cada vez mais igualitária, pelo menos com o progressivo aumento do número de mulheres que ingressam nos cursos de graduação em Geologia, em todo o país.

Em tempos recentes, existe uma crescente mobilização para fortalecimento de entidades e coletivos de associações de mulheres que atuam nas diferentes áreas das geociências. Apesar dessa agenda contribuir para a maior atuação das mulheres nas geociências do Brasil, acho que o principal desafio no âmbito profissional é que ainda temos que ser “melhores” do que a maioria dos homens para sermos reconhecidas. Mas outro grande desafio, pra mim, sempre foi conciliar a família com minhas atividades de pesquisa, que sempre envolveram muitas viagens. Minha sorte é ter um marido geólogo, que sempre me apoiou e incentivou, e uma filha que também gosta de atividades na natureza. 

Como uma cientista mulher apaixonada por sedimentos e as histórias que eles contam, gostaria de deixar uma mensagem para as meninas que querem seguir profissões desafiantes: ter paixão pela sua profissão e/ou uma área de atuação dentro dela, enfrentar os desafios com criatividade e ética profissional e, sobretudo, não se acanhar com a discriminação, pois somos mais fortes! 

Célia Regina de Gouveia Souza é geóloga, com mestrado em Oceanografia Química e Geológica e doutorado em Geologia Sedimentar, todos pela USP.  Foi Presidente e atuou em cargos de Diretoria da Associação Brasileira de Estudos do Quaternário em cinco gestões, é membro da Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleontológicos e do Grupo de Assessoramento Técnico em Mudanças Climáticas dos Sítios de Reservas da Biosfera e Geoparques da UNESCO na América Latina e |Caribe, e sócia fundadora da Agência Nacional de Gerenciamento Costeiro. É membro do Conselho Científico do IPA e professora credenciada plena do Programa de Pós-Graduação em Geografia Física da USP.