
09/03/2023
Com Denise Bicudo
Sou Denise Bicudo. Sou bióloga por opção. Fiz graduação na Universidade de São Paulo (USP), pós-graduação na UNESP (Universidade Estadual Paulista) campos de Rio Claro e pós-doutorado nos Estados Unidos, na Universidade do Alabama. Ingressei na vida científica ainda na graduação e, em 1987, na Carreira de Pesquisador Científico, nível I, quando ingressei no Instituto de Pesquisas Ambientais (então Instituto de Botânica), estando atualmente classificada no nível VI da carreira. Sou bolsista de pesquisa do CNPq e tenho atuado em dois programas de pós-graduação ministrando disciplinas e orientando alunos (mestres e doutores).
Ingressar na área de pesquisa científica em Botânica sempre foi meu sonho. Desde o início da graduação busquei orientação. Lembro-me de percorrer o corredor do Departamento de Botânica da USP, batendo de porta em porta e a resposta era sempre a mesma: retorne quando estiver no segundo ano. Não desisti e, finalmente, consegui um orientador (talvez um desorientador), mas que na verdade foi a porta de entrada no então Instituto de Botânica, onde busquei ajuda para sanar problemas de identificação de algas em alguns cultivos. Assim, iniciei minha trajetória no IPA em 1977, sob orientação da Dra. Célia Sant’Anna. Quando terminei a graduação, tive oportunidade de buscar estágio no exterior. Levei em mãos uma carta de recomendação de um pesquisador (reconhecido internacionalmente) que mal me conhecia. Esta carta abriu as portas para eu estagiar em excelentes centros de pesquisa em algas nos Estados Unidos (7 meses) e na Alemanha (3 meses). Regressei ao Brasil animadíssima para fazer pós-graduação. Porém, minha orientadora iria para França e, a pedido dela, o renomado pesquisador que mal me conhecia assumiu minha orientação. Seu nome é Dr. Carlos E. de M. Bicudo. Com ele tive sólida formação em taxonomia de algas e exemplos concretos de ética profissional, dedicação e doação.
Nos casamos e formamos, até hoje, uma parceria sem igual e muito profícua! Nunca escondi o desejo de me dedicar à pesquisa em ecologia de ecossistemas aquáticos e dele recebi total apoio. Fomos para um centro renomado em Limnologia na Universidade de Alabama, onde recebi supervisão de um expoente na área, que propiciou a expansão de meu conhecimento e uma visão holística e integrada dos ecossistemas terrestre e aquático. Voltei muito entusiasmada para implantar um laboratório de limnologia na instituição com métodos internacionais e introduzir pesquisas nessa área. E a minha trajetória prosseguiu com novas descobertas, novos desafios, abrindo caminhos, linhas de pesquisas e interagindo com profissionais de diferentes nacionalidades. Também contribuí com a administração da pesquisa assumindo cargos na instituição, mas principalmente em sociedades científicas, editorias científicas e algumas gestões no Programa de Pós-graduação institucional. Porém, minha maior alegria sempre foi a formação de alunos e de introduzi-los em trabalhos científicos de equipes. Hoje são docentes de universidades no país ou trabalham em empresa de gestão ambiental, alguns inclusive foram para o exterior e continuam na pesquisa científica ou em empresas de gestão ambiental. Olho para minha trajetória feliz. Foi fácil? Certamente, com altos e baixos, mas foi um caminho de descobertas e de grande crescimento profissional e humano e construído com dedicação e amor.
Em minha trajetória científica, participei de importantes investigações. Um estudo de grande relevância para a construção do conhecimento foi o monitoramento ambiental do Lago das Garças, uma belíssima represa situada na entrada da instituição. O que motivou este estudo? Entender as causas da degradação (eutrofização) do sistema e reverter esse processo. O estudo foi realizado durante 20 anos consecutivos com coletas mensais de fatores ambientais e biológicos (algas). Contou com a participação de pesquisadores da instituição e de fora dela e de inúmeros alunos de algumas gerações, que realizaram seus trabalhos de iniciação científica e de pós-graduação. O método foi padronizado ao longo do estudo para permitir comparações científicas. Levantamos e medimos as cargas de nutrientes das fontes poluidoras, bem como proveniente dos sedimentos lacustres. Acompanhamos a eliminação da maior parte delas e a melhoria da qualidade da água, que ainda não foi recuperada devido ao grande aporte de nutrientes de uma das entradas, porém, fornecemos informação científica para mitigar e reverter este processo. Com esta pesquisa, compreendemos os processos de retroalimentação envolvidos na eutrofização, o papel relevante do sedimento neste processo, e de seu agravamento em lagos rasos e com temperaturas mais elevadas, ou seja, situados em clima tropical. Este trabalho teve enorme repercussão no país, pois trouxe novidades científicas e, também, no exterior, pois os lagos de região temperada apresentam processos muito distintos, que com o aquecimento global estão se tornando mais vulneráveis à eutrofização.
Outra pergunta que nos motivou foi buscar a causa da degradação do Lago das Garças. Para isso, reconstruímos a história ambiental deste sistema desde sua formação em 1894, quando era usado para abastecimento público. Com este estudo abrimos no país a linha de pesquisa em paleolimnologia, ou seja, avaliamos o arquivo de informações preservado e depositado ao longo do tempo nos sedimentos. Amostramos e avaliamos a coluna sedimentar depositada no lago que, datada, representou 100 anos de informação. E a partir de marcadores ambientais biológicos e químicos reconstruímos a história ambiental da represa e descobrimos que os primórdios da degradação da qualidade d’água iniciou-se em 1958 com a construção do zoológico, acelerando em 1972 com o aporte de esgoto da então Secretaria de Agricultura e Abastecimento (desativada em 2014). A pesquisa em Paleolimnologia teve grande impacto nos meios científicos e esta abordagem foi aplicada para reconstruir os impactos ambientais da Represa Guarapiranga, um dos principais mananciais de água para abastecimento em São Paulo. Desta vez, contamos com equipe bem maior, de várias disciplinas, incluindo uso e ocupação da terra. A repercussão nacional e internacional foi enorme e a pesquisa está disponível em um livro (100 Anos da Represa Guarapiranga: lições e desafios) e vários artigos científicos. Essas pesquisas foram se ampliando para outros reservatórios e, em seu conjunto, fornecem bases científicas sólidas sobre proteção, compreensão do processo de degradação e de recuperação de represas do estado, aplicáveis em outros sistemas com regiões climáticas similares.
Sobre os desafios enfrentados enquanto pesquisadora por ser mulher, na área de biológicas, especialmente botânica, os conflitos devidos a diferenças de gênero são bem mais amenos em relação, por exemplo, às áreas de exatas. Alguns desafios que enfrentei sempre ocorreram em instâncias administrativas superiores dentro e fora da instituição, principalmente, em reuniões com predominância do sexo masculino. Para ser ouvida, a pesquisadora precisa se posicionar com propriedade, clareza e firmeza.
Desde meu ingresso na graduação observei mudanças enormes na representatividade e equidade de gênero. Vou relatar um fato curioso: quando iniciei na USP (década de 1970) ainda havia resquício de preconceito com as mulheres que queriam constituir família e as lideranças eram predominantemente ocupadas por homens. Assim, presenciei profunda mudança ao longo de minha trajetória e o aumento expressivo da conscientização do papel da mulher na Ciência e na Sociedade. As mulheres passaram a participar na liderança de projetos e a ocupar altos cargos de direção da pesquisa científica.
Em relação a outros campos profissionais, a Ciência é um campo acolhedor para todos, independente do gênero. É o indivíduo que faz a diferença, que com perseverança e dedicação é bem-vindo e acolhido no meio científico. Entretanto, algumas áreas, a exemplo das biológicas, são mais acolhedoras para as mulheres, mas acima de tudo é o indivíduo que constrói seu espaço.
Quando olho para o futuro da ciência feita no Brasil e pelas mulheres, vejo um cenário muito promissor para a ciência brasileira. Ainda que este avanço seja independente de gênero, acredito que as mulheres introduzirão outras formas de fazer ciência e trarão grande impulso para o desenvolvimento científico e profissional.
Para as iniciantes na ciência, MENINAS, tenho uma mensagem especial para vocês. Todas vocês são mulheres extraordinárias e únicas. Acreditem nisto! Vocês nasceram com um sonho e com talentos individuais. A trajetória científica é como uma escola avançada onde evoluímos gradualmente conforme vencemos desafios e avançamos etapas. É preciso persistir, aprender a sorrir com os erros e os acertos e acreditar que tudo é possível. Deem sempre o seu melhor, com boas intenções e a vida levará vocês para caminhos surpreendentes. Quando estiver muito difícil, parem e lembrem de seus sonhos e que vocês nasceram para um propósito: vencer!
Denise de Campos Bicudo, bióloga, com doutorado em Ciências Biológicas, e pós-doutorado pela Universidade do Alabama (EUA). É orientadora de mestrado e doutorado pelos programas de pós-graduação do Instituto de Pesquisas Ambientais e da UNESP de Rio Claro. É bolsista de pesquisa do CNPq, com atuação principal nos seguintes temas: eutrofização, qualidade da água de reservatórios, bioindicação, reconstrução ambiental (paleolimnologia), biodiversidade e ecologia de diatomáceas.